EBS do Vale do Âncora – Projeto “UMMAR de Trabalhos” – Atividade 4 – Encontro com o pescador Sr. Celestino Ribeiro – A entrevista completa

Projeto: “UMMAR de Trabalhos” 

8 de fevereiro de 2019, 11:00 horas :: Turmas VA3A e VA3B 

Entrevista realizada ao Sr. Celestino Ribeiro, pescador da pesca do bacalhau, à linha, nos dóris


1. Como se chama e que idade tem? Em que localidade nasceu? 
R: Chamo-me Celestino Ribeiro, por alcunha - porque todos os pescadores em geral têm alcunhas – o Ulisses. Tenho 72 anos de idade e nasci em Vila Praia de Âncora, no coração do Portinho. 

2. Onde mora e como ocupa, atualmente, o seu tempo? Ainda vai à pesca? 
R: Moro na Rua António Paula, no antigo lugar da Vista Alegre, um pequeno contraforte que desce do monte da Carvalhosa. Esta situação privilegiada com vista para o mar permite-me saudá-lo cada manhã, ainda antes de sair de casa. É o primeiro olhar de cada dia para o objeto da minha paixão: o mar. Ocupo o meu tempo com literatura, música, caminhada, família, contatos e trocas de memórias com antigos companheiros da pesca do bacalhau à linha, o que me leva a investigar outros aspetos da Grande Pesca menos conhecidos. Também mantenho contatos com outras pessoas de outras áreas do conhecimento nesta matéria da Pesca do Bacalhau. Não vou à pesca por sistema, apenas um dia ou outro pesco na ribeira e apanho uns percêbes, mexilhões e lamparões (lapas). No verão saio para o mar com a masseira “Senhora da Bonança” para a manter operacional e matar saudades dos velhos tempos de pescador. 

3. Com que idade começou a pescar? Frequentou alguma escola para aprender a pescar? 
R: O primeiro peixe que pesquei foi na ribeira do Moureiro. Tinha apenas 5 anos de idade. Foi uma emoção. Mas comecei a minha atividade de pescador aos 12 anos. Frequentei a Escola profissional de Pesca de Lisboa aos 16 anos, não para aprender a pescar, mas para embarcar para a pesca do bacalhau sem pedir a ninguém, a um veterano, que me levasse. Agi, assim, por minha conta. Este curso de marinheiro-pescador, todavia, aumentou os meus recursos técnicos. 

4. Porque é que escolheu, como profissão, a pesca? Na sua família já havia pescadores? 
R: Desde criança vivi nesse ambiente do Portinho com os seus pescadores e tinha na família pescadores. A figura referencial da minha vocação marítima era o meu avô Plácido da Silva. Ele era o meu herói, o meu velho lobo do mar, a quem respeitavelmente os outros pescadores chamavam mestre. Na escola do agora chamado Ensino Básico, recordo-me de uma redação em que se perguntava o que queria ser quando fosse maior. Eu respondi e expliquei que queria ser pescador, como todos os homens do meu meio cultural. E esse prenúncio cumpriu-se vivido com intensidade. 

5. Com que idade embarcou, pela primeira vez, para a pesca do bacalhau? Como se chamava a embarcação? 
R: Tinha feito 17 anos. Embarquei no lugre-motor “Santa Maria Manuela”, um navio de 4 mastros que faz parte de um conjunto de três embarcações semelhantes e são designadas pelos três cisnes brancos: “Santa Maria Manuela”, “Creoula” e “Argus”. 

6. O que sentiu, nesse dia, quando a embarcação se afastou do porto e deixou de ver terra? 
R: A partida para a pesca do bacalhau era comovente: depois da bênção dada por um bispo aos navios ancorados no Tejo frente a Belém, as mulheres dos pescadores e outros familiares ficavam na terra a gritar e a chorar acenando com lenços. O navio soltava três estridentes apitos de despedida que rasgavam a alma e rumava ao largo mar. Eu sempre ficava no convés a olhar a terra até desaparecer; depois, o meu olhar voltava-se determinadamente para o horizonte poente e conformava-me que a terra só a voltaria a ver passado muito tempo. Agora era com o elemento abissal que tinha de conviver. Porém, sempre com a esperança de voltar.

7. Como era a vida de um jovem pescador, na pesca do bacalhau? Que tarefas fazia? Quantas horas trabalhava, por dia? 
R: A vida era duríssima para o pescador do dóri. Não havia horário, as jornadas de trabalho no dóri eram de 14 a 16 horas acrescidas de mais umas horas variáveis conforme a pesca de cada dia, com a escala e salga a bordo do navio. Muitas vezes ficavam apenas duas horas, ou até uma hora para descanso. O cansaço e a falta de sono eram tais que, na solidão do dóri, passávamos às vezes pelo sono de repente e nos parecia ter visões e ouvir vozes, às vezes embrenhados no denso nevoeiro. Dizíamos que eram “ouras” que nos passavam pela cabeça. É inacreditável, não é? Mas quem lá andou sabe do que falo. Eu, para além de pescador no dóri, era salgador, o trabalho mais duro e responsável exercido na atmosfera claustrofóbica do porão cheio de sal e de peixe e escassamente iluminado por gambiarras que era necessário deslocar para a salga. 

8. A alimentação, a bordo, era boa? Que alimentos comiam? O que bebiam? 
R: A alimentação era geralmente fraca, sempre à base de bacalhau fresco cozido com batatas, variando com feijão ou grão. Era este o menu de cada dia, a única refeição quente. Só variava ao domingo: carne salgada em barricas com muito sebo. Para mim era intragável, mas por esse prato sabia que era domingo, várias vezes perdida a noção do calendário. Davam-nos vinho a essa refeição, misturado com uma percentagem de água para durar toda a viagem. Na Gronelândia, a água era racionada, exceto para beber. Não se tomava banho, só se fosse da chuva ou do mar se lá caíssemos. 

9. Como é que os oficiais tratavam os pescadores? E os pescadores, eram amigos uns dos outros? 
R: Os capitães eram maioritariamente déspotas. E culpavam os pescadores das fracas pescarias. Castigavam homens e descarregavam sobre eles as suas frustrações e estados de humor. A vida da pesca à linha com dóris de um só homem era muito competitiva, porque se ganhava conforme cada um pescava. A listagem quinzenal afixada pelo capitão com os resultados individuais, estava ali para fomentar essa competição. E, por isso, suscitava invejas e até discórdias. Houve, até, tragédias que se deram por causa da famigerada lista. Quem queria passar para as linhas da frente, às vezes carregava demasiado o dóri e afundava-se. Em breves minutos no mar gelado tudo tinha acabado. Mas, ao mesmo tempo, nos momentos de perigo, de um dóri que não voltava perdido na negrura do nevoeiro, ou outra situação, de saúde, de notícias negativas, etc., éramos muito solidários e amigos conviventes. Também havia compaixão por aqueles que pescavam muito pouco e havia sempre alguém que tentava ajudar. 

10. Alguma vez teve um acidente durante a pesca? E os seus companheiros pescadores? Lembra-se de algum companheiro que tivesse falecido durante a pesca? 
R: Lembro-me de ter espetado um anzol numa mão e de não poder remar para o navio. A mão começou a inchar. Fiz sinal a outro companheiro ainda distante de mim colocando um casaco de oleado na pá de um remo e arvorando-o como pude. Depois toquei repetidas vezes o búzio. Os sons no norte são bastante audíveis e muito mais quando está calma estanhada, mas não era o caso naquele dia. O tempo estava cinzento e corria uma ligeira brisa. Esse companheiro veio em meu socorro. Rebocou-me para um navio que ficava a sotavento, era o “Celeste Maria”, onde o enfermeiro cortou a barbela e me extraiu o anzol. Sim, numa viagem perdemos um homem e foi muito duro para todos. Recuperamos o seu corpo à fúria das alterosas vagas e colocámo-lo sobre a mesa onde comíamos. Ali, ladeando o corpo, tomávamos as refeições. É uma experiência que jamais esqueceremos. Todos chorávamos. 

11. Como era conservado o bacalhau, depois de limpo? Onde era guardado? 
R: Depois de esventrado, decapitado, escalado e lavado, descia ao porão onde era salgado. 

12. Quanto tempo durava uma viagem à pesca do bacalhau? 
R: Uma viagem ao bacalhau durava geralmente seis meses. 

13. Quando algum pescador adoecia durante a viagem, como e por quem era tratado? Fale-nos um pouco do navio Gil Eannes e explique-nos porque ficou conhecido como o “anjo branco”. 
R: Quando um pescador adoecia no mar, o capitão comunicava ao “Gil Eanes”, o navio-hospital e de apoio à Frota Portuguesa naqueles mares. Era o Anjo Branco, não só por ser pintado de branco como os navios da Frota Branca, mas porque nos trazia ajuda, cura e conforto espiritual, correio, abastecimento de gasóleo, água, isco e alguns alimentos para a despensa com falta de stock. Gostávamos sempre dessa visita amiga. 

14. Gosta de lembrar o tempo da pesca do bacalhau ou prefere esquecer esse tempo? 
R: Eu tive dois momentos: um de esquecer, tentar esquecer. Foi assim durante muito tempo. Lembrar o quê? Uma vida duríssima, tão difícil de acreditar por quem lá não andou? Era melhor esquecer, como se fosse um sonho. O outro momento foi o de lembrar que foi na minha melhor idade e que tinha sobrevivido aos perigos e às mais intensas jornadas de trabalho de que há registo na história. Foi a necessidade de contar às novas gerações essa epopeia, a última de Portugal no mar. E, como pedia Hector Lemieux, o realizador do documentário “The White Ship” - O Navio Branco – “que os vindouros não os esqueçam, eles foram heróis singulares”, acabei por sentir o dever, como se fosse incumbido duma missão, a de fazer lembrar esta grande aventura em memória de todos que já não estão connosco. Nós, os que ainda estamos cá e já não somos muitos, temos esse dever porque somos os que podemos falar na primeira pessoa daquela experiência. Por isso, hoje, escrevo várias crónicas sobre o mar, a pesca local, com certeza, e sobretudo sobre a pesca do bacalhau em dóris de um só homem, uma modalidade única no mundo, distinta de todas e só nossa. Participei no documentário “A Um Mar de Distância” que me levou a St. John´s 48 anos depois da última largada das amarras do porto daquela cidade rumo a Portugal. Para mim voltar foi um reencontrar a minha história e cumprir um sonho. St. John´s significava um refrigério na dura luta pela vida e pela sobrevivência. E todo este contributo para que “ninguém os esqueça” mantendo viva a sua memória. Há algum tempo atrás, mas ainda recente, um dos capitães com quem embarquei reconheceu: … “eles sim, os pescadores dos dóris, é que foram os verdadeiros heróis”. Por isso, é com muito prazer e gratidão que aceitei este convite do vosso professor, meu bom amigo, António Garrido, e da vossa escola, dos outros professores, para trazer para vós e para a comunidade este projeto – UMMar de Trabalhos – para o qual auguro o maior sucesso. 

Sempre ao dispor, Celestino Ribeiro.

Lugre-motor Santa Maria Manuela (Frota Branca)

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